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quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

dois poemas que gostava de ter escrito

IDOLA FORI

Eu sei diversas coisas
saber é afinal a minha única ocupação
Sei pouco de manhãs
mas talvez possa dizer de mim que amei o mar
e cada árvore que me viu passar
e insistir na vida como uma canção em voga
Quem mais que eu
quem foi esqueceu?
estamos mal feitos pronto
Para quê a doçura no olhar
de uma mulher certos dias?
O morno calor do sol rasante pelas tardes
de setembro na senhora da guia
senti-lo em abril numa sala voltada ao poente
de súbito sabendo de todos os papéis
ou outra eternidade que não essa
Talvez ouvir egmont sentindo-me importante de repente
ou então conversar sobre o poeta à beira de água
chegar a mangualde ao pôr do sol
ou a duas igrejas na semana santa
ouvir os sinos na matriz vizinha
cheirar madeira nova nas gavetas
fechar a porta sobre todos os cuidados
cantar a triunfante juventude
Não mais andar perdido de ano em ano
Não mais a morte questão para ociosos
à tarde no café dos reformados
Oh quem me dera ser católico
ou pelo menos morar alguma vez
em lisboa ou nos arredores de lisboa
Não há remédio nenhum
esqueci-me de tanta coisa
Sei que isto não é grande coisa
mas nenhuma outra coisa me é dada
O que é preciso é que não doa muito
Depois que me escondam na terra como uma vergonha.

CORPO DE DEUS


A minha unha tem crescido tanto
e entretanto vim morrendo pouco a pouco
temi amei preocupei-me com problemas
fui feliz vivi a vida emocionei-me
Venceram-se diversas prestações
A minha poesia é por vezes mínima e mesquinha
Aqui estou eu perdido na contemplação da unha
a unha pequenina a que regresso sempre
Não canto armas nem barões nem mesmo este mar
que desdobradamente aqui vem rebentar
em ondas de água azul em algas e pedrinhas
Afinal tão instrutivo é
perder-me na contemplação do pé
descalço aqui à doce beira-mar
como aprofundar os mistérios deste dia
em que cristo instituiu a eucaristia
E eu comecei o dia à procura de livros
preocupado com contas a pagar
sem bem saber de mim nem do que é meu
(Falo muito de mim e de muitas maneiras
algumas delas transpostas fantásticas fingidas
mas quem há-de morrer e quem é que nasceu
mais presente a mim próprio do que eu?)
Havia porventura de me recordar 
da ceia do senhor do pão do vinho?
O meu pão é todo este dia
e vou buscá-lo à contemplação da unha:
crescem mais as dos pés do que as das mãos
serei eu que as corto menos vezes?
será e terá sido sempre assim com toda a gente?
Cristo terá alguma vez sabido isso?
Doer-lhe-ia o pé ao instituir a eucaristia?
Mas o meu pão é todo este dia
e doem-me muito mais os meus dois pés
do que o corpo de cristo embora meu amigo
Sermões e procissões interpretações doutrinais
talvez mundo perdido para nunca mais
aqui junto do mar junto dos meus
mesmo ao falar de deus eu me esqueço de deus

Ambos os poemas são de RUY BELO, e podem ser encontrados no livro País Possível, Lisboa, Ed. Presença, 1998, p. 44-45 e 47-48.

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