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sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

o confidente

era de noite e o homem que falava com os olhos foi interrompido por uma pessoa que queria falar com ele. pessoalmente. de resto, exigia-o. o homem que falava com os olhos pensou que não havia de ser nada de especial e que o assunto de conversa talvez se despachasse via telemóvel ou via qualquer uma daquelas formas novas que há de as pessoas conversarem sem se encontrarem cara a cara e que são todas modernas e muito engraçadas. a pessoa insistiu que tinha mesmo de ser pessoalmente. de qualquer maneira, o homem que falava com os olhos pensou que, desajeitado e inútil como é a lidar com coisas sérias e importantes como os sentimentos e o amor em particular, não fazia grande sentido ser alvo de tal convocatória. o homem que falava com os olhos, ainda assim, sabia que não era o centro do mundo, sempre gostou de pensar primeiro nos outros e depois nele. percebeu, aí, que não podia dizer que não. saiu de casa apressado (e já depois da hora) deixando outra pessoa pendurada: apesar da sensação de um vazio de sentido para aquele acontecimento, o encontro com aquela pessoa era, então, a única coisa que interessava. o homem que falava com os olhos quis jogar a sua vida toda ali, como se algum dos dois que se iam encontrar estivesse para morrer, como se fosse o último encontro, o único encontro. chegou finalmente ao pé do seu amigo, apreensivo quanto ao tema da conversa. era, afinal, um acontecimento feliz, e o homem que falava com os olhos alegrou-se porque o seu amigo queria partilhar a sua felicidade com ele. o homem que falava com os olhos percebeu que uma notícia daquele tipo não podia mesmo ser dada por telefone nem pela internet. tinha de ser cara a cara. até porque mesmo nas notícias felizes há dúvidas, há pensamentos - as pessoas pensam, e a maior parte das vezes pensam demais. o amigo queria saber o que o homem que falava com os olhos achava quer da sua felicidade quer dos seus pensamentos. o homem que falava com os olhos disse que estava também feliz pelo seu amigo e acrescentou mais uns pensamentos. depois falaram também sobre o próprio homem que falava com os olhos, que ficou todo envergonhado a dizer umas coisas sobre a sua vida e ficou a pensar que faz umas coisas de quem é parvo todos os dias. despediram-se os dois felizes e contentes e o homem que falava com os olhos voltou para casa sozinho. pelo caminho, pensava para si mesmo «sou parvo todos os dias», mas ao mesmo tempo ia estupidamente feliz [onde é que ele terá ouvido isto?] porque foi importante para alguém, ainda por cima para alguém que se interessou por ele. a vida do homem que falava com os olhos fazia agora mais sentido.

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