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quinta-feira, 2 de junho de 2011

Escrever como um idiota

Esta semana, uma amiga pediu-me que lhe escrevesse sobre uns assuntos que não tinha muito claros (no caso, os temas da moral e da pessoa). Ao escrever o texto para lhe entregar, reparei que quando se está a falar dos assuntos mais sérios (e não duvido que os temas da moral e da pessoa sejam assuntos sérios...) é ténue a linha que separa a seriedade da loucura. Se fosse há uns tempos, diria que isso tem apenas haver com a minha tendência natural para a parvoíce, que me leva a não aguentar muito tempo sem descambar para a estupidez... Hoje, porque trabalho sobre o idiota em São Paulo, percebo que andar no limbo que separa a idiotia da seriedade é a condição natural de quem trabalha os temas mais profundos (o que não significa que não se mantenha a minha tendência natural para a parvoíce...).
De idiota já se haviam mascarado os actores do teatro grego, depois o próprio São Paulo (alguns autores afirmam também Jesus como idiota, ainda antes e como modelo para Paulo de Tarso), depois tantos e tantos na Rússia (os chamados «Santos Idiotas por causa de Cristo», da Ortodoxia Russa)... Todos tinham o mesmo objectivo: fazer da aparente loucura o maior sinal de credibilidade, na medida em que só parecendo loucos, doentes, aquilo que tinham para transmitir podia ser ouvido sem que isso trouxesse consequências imediatas para quem produz as afirmações. De resto, é o que permite que se chegue ao mais fundo das questões, porque a loucura (ainda que apenas aparente, como instrumento retórico e de pensamento) deixa o homem ir além da razão simples, e o homem é mais que razão. Não por acaso, é na boca do idiota da sua história que Dostoiévski põe a que considero a mais bela intuição de O Idiota: «a beleza salvará o mundo».
O problema aqui é que aos dias de hoje não chegaram idiotas destes, daí que espante o texto que rapidamente oscila da seriedade para o humor, ou mesmo para a loucura, o texto em que aparece o comentário «Não diga isso senão ainda vai preso!», a pessoa que fala sem medo no território inimigo, etc.. Os dias de hoje trouxeram o predomínio da razão "pura", que despreza outros auxílios (da fé, da Beleza contemplada [a tal que faz cair de joelhos, indo, assim, além da simples racionalidade], dos sentimentos e não só das sensações, etc.), e com ela vem o medo das consequências do que se diz.
Os idiotas do teatro sabiam que cumprir a sua função os deixaria a dormir ao relento e a ser comparados às prostitutas e aos pedintes, aos mais baixos da sociedade. Paulo sabia que cumprir a sua função o obrigaria a ser nómada no Mediterrâneo e que o levaria à prisão, onde passou os últimos dias em Roma. Os Santos Idiotas por causa de Cristo, sobretudo nas épocas da modernização da Rússia e da implantação da República Soviética, sabiam que continuar a agir como tal os levaria aos Gulag e à morte. Mas o fim que levava qualquer destes a apresentar-se como idiota sobrepôs-se aos meios.
Assim, percebo, cada vez mais que, mesmo (e isto já se torna o refrão deste blog...), se não agir, escrever, pensar como um idiota não atingirei o meu fim, que só pode ser um: o martyrion, o testemunho verdadeiro da fé que professo. Como com Córdula, antes tarde do que nunca!

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