blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

Pesquisar neste blogue

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Quando se vê morrer um homem

Não levei muito a sério quando me disseram que os autocarros e o metro são lugares onde se fazem grandes experiências filosóficas e teológicas. Continuei a pensar que isso é coisa que se faz a ler livros dos grandes autores, a ler a Palavra de Deus, na Missa e nos outros sacramentos, na oração pessoal, nos grandes debates académicos e nas conversas de café, de porta de faculdade ou de corredor com os colegas que também reflectem sobre estas questões. Segui pensando que isso seria coisa para, no mínimo, umas tertúlias mais ou menos organizadas, mais ou menos espontâneas, em casa própria ou de uns amigos...
Mas a vida, que me põe quase todos os dias a caminho de autocarros e do metro, ela mesma se encarregou de me mostrar que afinal a frase estava certa. Uma das experiências que faço várias vezes é a mesma que levou a pessoa que me disse esta frase a referi-la: a experiência do amor dos feios... Duas pessoas feias que são capazes dos maiores (melhores, mais belos) gestos de carinho. Já fiz a experiência do contrário, duas pessoas bonitas que têm os mais feios gestos. Uma pessoa bonita que é capaz das mais feias palavras e obras. Já agora, para inserir todas as variáveis, uma pessoa feia fazer ou dizer bonitas coisas. Duas pessoas bonitas expressarem amor. Duas pessoas feias expressarem coisas feias...
Muitas outras experiências profundas se fazem nestes meios de transporte. Uma delas é a de que, não raras vezes, eles são «solidões ambulantes», transportam gente que vai só, cortando o silêncio de estar sozinho com os mp3's e os telemóveis e os livros e etc e tal. Outra é a de que neles vemos os seres humanos tais quais são (alegres, tristes, bem ou mal educados - tudo coisas que ficam mais claras quando se está só). Lá se permite ainda chegar a momentos de inspiração especial (que a solidão pode ser boa e dar frutos), como o da minha decisão de construir a minha autobiografia, aqui no blog, como poema (ainda que eu não seja poeta, nem a isso tenha pretensões, e que quase todos aqueles textos andem à volta de Deus, que é afinal Quem está no âmago de toda a vida de um aprendiz de teológo como eu, mesmo quando absconditus), pois só o poema permite preencher o silêncio, dizer o que parece não poder ser dito.
Uma outra experiência que se pode fazer num autocarro ou no metro é ainda (e era aqui que queria chegar), e se bem que felizmente pouco comum, a de ver morrer um homem. Aconteceu-me hoje. Voltava de Queluz de Baixo, com mp3 mas sem vir a ler livro, quando, numa zona em que não é habitual, havia especial congestionamento de trânsito. Eu, ainda que sem algo de especial para fazer em seguida, improperiei para mim mesmo contra o aselha que estaria a provocar aquilo. Mais à frente, vejo um triângulo, e improperiei de novo interiormente contra o homem que teria deixado o carro avariar num sítio daqueles... Subitamente, observo um grande aglomerado de gente à frente do carro. Vejo gente a mexer-se dentro do autocarro correndo para a janela (mesmo na cidade, os abutres pressentem a morte). No chão, esvaindo-se em sangue, um homem jaz na posição fetal, enquanto uma senhora tenta ainda resgatá-lo, prendê-lo como pode à Terra. Muitos gritam: «Já nem se mexe». E eu pensei: «Este já vai entrar na terra dos vivos». Rezei. E por fim lembrei-me que, de facto, os autocarros e o metro são lugares de grandes experiências filosóficas e teológicas.
Mas, mesmo, o que não me sai da cabeça é a sensação de ver morrer um homem. A impotência de quem vê, a solidão a que ele é votado, ainda que rodeado de gente. A oração que rezei naquele momento? Essa mesma, que se reza nestas alturas. O silêncio.

1 comentário:

  1. Como é verdade que o silêncio é a mais poderosa das orações... aliás, aquela minha preferida que nem sempre sei rezar, mas que concentra lá tudo o que quero de Deus.

    O homem... esse sim poderá agora estar nessa profunda oração... como será?

    ResponderEliminar