blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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segunda-feira, 22 de julho de 2019

ver o mar à noite

há uma mulher a brincar com as ondas
leva uma criança pela mão
e não és tu, nem a mulher nem a criança

sentado numa rocha tento não pensar nisso,
preocupa-me o vôo nocturno de duas gaivotas
que vejo passar bem por cima de mim,
não sabia que as gaivotas voavam à noite
nem que destino levam.

a mulher que brinca com as ondas
também não se deve preocupar com isso
e nem deve saber de ti nem do teu amor pelo mar

sexta-feira, 19 de julho de 2019

passar para o papel

a vida às vezes não é saltos de júbilo
és tu diante do cão raivoso
a mexer nos bolsos com as mãos suadas
à procura de algo que entretenha o animal,
um isqueiro já gasto, um talão do multibanco,
uma carta de amor que já nem sabes
porque e para quem escreveste,
um osso de frango ressequido
que guardaste para dar sorte e nunca deu,
tu a rezar para que o cão mude de alvo
e vá embora, às vezes o cão a ir embora
e a nem querer saber de ti

código da prova é o seis três cinco

já não consigo resolver os problemas matemáticos mais simples,
leio y+2=z e penso num lobo selvagem
a dilacerar um pássaro,
talvez um corvo ainda jovem, em putrefação,
não sei calcular a área de um paralelepípedo,
prefiro, como espinho chagado na carne,
lembrar-me da dor da solidão
a arder como mãos gretadas pelo vento marítimo

terça-feira, 16 de julho de 2019

guitarra portuguesa

Para o Manel

a sala escurecia, alguém implorava por silêncio,
fechavas os olhos, mãos nos bolsos,
e a timidez de repente escondia-se por baixo da tua voz,
não mais a desconfiança de que todos estão a olhar para ti,
não mais o medo da casa solitária
afastado pelos movimentos do corpo,
não mais os amores que se perdem
e que foste deixando fugir
carpidos nos poemas que cantas
nem sempre sobre os cavalos e a lavoura,
às vezes sobre os beijos não dados e as saudades,
em segredo cantavas as saudades
que havia de ter de ti
quando caísses levemente sobre a terra

quinta-feira, 11 de julho de 2019

a inquietação

já vi morrer um homem.
assisti impotente a tudo
do lado de lá da janela grande
de um autocarro
com destino ao colégio militar.
as mãos nervosas contra a janela,
como se pudesse ajudar,
e depois a mão esquerda
rumo ao bolso esquerdo
para te dizer que estava a ver morrer um homem,
e o coração a desistir de to dizer
porque sei que és sensível a essas coisas
e sofres muito com as dores do mundo.
pensei ligar à minha mãe
e gritar por ajuda,
mas o telefone tocava e ninguém do outro lado.
fiquei para ali deixado
com dores horríveis no peito
e uma convicção profunda a crescer
de que o que me falta
é descobrir um verso
que nos pacifique da inevitabilidade do fim
de tudo isto

são breves todas as canções de amor

ou tu
ou nada

segunda-feira, 8 de julho de 2019

uma flor a nascer a oeste

vagueio sozinho
pelos lugares que prometi mostrar-te
como um eremita
entrego-tos no silêncio
das minhas preces

sexta-feira, 5 de julho de 2019

a mágoa

estás tão longe
e dizes não
e tenho frio
e uma dor tão grande
a crescer no peito
tento apertar a dor
e levá-la daqui para o lixo
e não consigo
não há a máquina que eu queria
para me esquecer de ti
e do teu sorriso
e dos teus olhos grandes
e dos teus gestos de ternura
e da tua voz
e de como contas os teus sonhos
não há a máquina que eu queria
para me conformar à solidão
em que vou morrer depressa

quinta-feira, 4 de julho de 2019

priére

ando para aqui sozinho
a rezar a missa do mundo,
vai ficar tanto lugar lindo
por te mostrar

quarta-feira, 3 de julho de 2019

bloco de notas do curador ferido

só mais um homem
igual a todos os outros
a calar uma dor enorme
contra o peito

beco do centro

a velha lia o jornal à janela do café
e acompanhava com água das pedras
o som demasiado alto da televisão
enquanto a aldeia passava lá fora
como sentimento forte a arder no peito

na rua os putos passeavam de bicicleta
a ansiar outras paragens

e eu concentrava-me no som metálico
talvez de uma obra mais distante
talvez de alguém a remendar um coração

segunda-feira, 1 de julho de 2019

repudiou-a em segredo

torrei em livros todo o valor
daquela viagem que faríamos de carro
sem destino certo
quando viesse o calor

porque são as palavras
sempre as palavras
que ainda hão-de me salvar

soldadinho de chumbo

os soldados esperavam o inimigo
no cimo da colina
e viam ao longe o mar
e o castelo,
uma hipótese ainda
para a beleza,
e disparavam os canhões
e escondiam-se dos tiros
que como as raparigas lá longe
os fariam morrer de amor.