blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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domingo, 28 de setembro de 2025

lucky man

em algumas civilizações 
a sorte vem por trazer ao peito 
uma lasca de vidro
em forma de malagueta.
noutras, quando se vê um anão
ao raiar do dia.
continuo a acreditar nos discursos:
a sorte, como a paz verdadeira,
dá muito trabalho 

coisas do coração

as canções dizem
mil e uma outras coisas,
é função dos poemas trazer
uma outra mensagem:
o amor é um lugar solitário
para viver a companhia

domingo, 31 de agosto de 2025

bomba relógio (título roubado de uma canção)

as memórias são um espaço de traição. 
não relembramos, criamos histórias do que foi,
a verdade é sempre outra coisa,
um tique taque a alertar
para a vida que rebentará ainda
e dará flores suficientes
para encher o jardim municipal

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

banda sonora original

sentamo-nos numa mesa de esplanada. 
conto-te que escrevo poemas na cabeça,
companheiros dos passeios solitários
pela aldeia, inspirados pelo cantar dos pássaros
de que nunca sei o nome, o ataque certeiro
das corujas ao cair da noite,
um rato grande morto no pátio da escola encerrada,
a cadeira de vime no centro da sala escura
da casa abandonada dos avós de alguém,
antes de os passar ao papel.
já levam duas vidas, quando chegam ao leitor
que finalmente lhes dá onde habitar.

também queria dizer-te que um bom livro
tem que trazer banda sonora,
boas canções para lá do que já ouves,
discos inteiros do coltrane,
bach, bandas punk obscuras do barreiro,
o órgão de messiaen a querer imitar os pássaros.
um bom livro é como um filme de kiarostami,
cinco minutos de uma abelha a voar no deserto.

até aqui fingias interesse, agitavas nervosa
o copo de vinho branco fresco às três horas da tarde,
mas captei finalmente a tua atenção. 
quantos olhos tem uma abelha a voar no deserto?
saberá a abelha que o oásis ao fundo
é só o reflexo do sol na areia?

e assim começaste a escrever um poema
dentro da tua cabeça,
talvez um dia o ponhas num papel

terça-feira, 26 de agosto de 2025

fragas

um bom verso
transforma pedras em palavras,
é uma vitória do papel
sobre a aridez dos montes
e da vida, tantas vezes

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

caballo salvaje

não sabemos quando,
mas virá o dia
em que, diz num romance,
algo dentro de nós estalará:
o reinício do mundo e das coisas,
mais um reinício da vida

domingo, 3 de agosto de 2025

do livro das instruções de zoologia e botânica

há uma borboleta de asas grandes
a conduzir-me pela aldeia
até a um lugar mais fresco
onde me sentar
para aguardar a vida nova que vem,
um lugar de redenção 

quinta-feira, 17 de julho de 2025

verbum

preciso de saber se estás aí
desse outro lado mais lindo do mar,
queria contar-te que hoje, pela manhã,
descobri uma palavra nova
e foi um milagre. 
quero que estejas aqui
para partilhar os meus milagres

sábado, 21 de junho de 2025

roupa de festa

sentar-nos-emos à mesa
para te apresentar os meus poetas,
poetas para dias cinzentos,
os dias cinzentos dos poetas

alcachofra

um homem subia à altura
dos moinhos abandonados
a desejar planar sobre
os campos roxos de alcachofras,
devem ser mais bonitos os campos
vistos de cima, em voo livre,
devem ser mais bonitos
os homens em queda
armados com asas de cartão

terça-feira, 17 de junho de 2025

centeio

um dia pegarei nas tuas mãos
e com elas emaranhadas nas minhas
faremos com calma o pão,
aguardaremos com vagar que cresça
e escureça no calor do forno.

partilharei contigo a mesa,
partirei contigo o pão
e dividiremos o amor

segunda-feira, 16 de junho de 2025

uma playlist adolescente

como um fruto adolescente
a pender de uma árvore velha
exposta ao sol

sou eu, a anoitecer
com saudades daquele tempo
dos discos partilhados com os amigos

das tardes em que morríamos a rir
à sombra das ameixeiras
sem saber que não voltaríamos mais aí

quarta-feira, 14 de maio de 2025

nubes

o sol a bater contra as nuvens
ao cair da tarde
é, certos dias,
a única beleza necessária 

domingo, 30 de março de 2025

bucólica


quando chegava a primavera
escolhia criteriosamente a sombra
de uma árvore milenar,
para lá dos pomares que cercavam
a pequena aldeia
e sentava-me sobre uma pedra
a escrever versos de amor que,
nunca saberias, eram sempre para ti.
ao final da tarde abria uma cova com as mãos
e enterrava todos os poemas,
para que não os pudesses ler
e para que deles brotassem flores

sexta-feira, 28 de março de 2025

le retour du soleil

andamos para aqui a esperar a vida,
com o amor, a companhia dos amigos,
a mesa farta inaugurada na manhã de páscoa,
canções felizes sobre liberdade e a respiração
frenética das aves em vôo rasante,
como os pequenos pássaros esperam
por um dia de sol, no final de uma manhã
da próxima primavera

segunda-feira, 24 de março de 2025

manualidades

as mãos humanas são um instrumento 
insuficiente para medir a febre
e as distâncias físicas,
também as interiores,
para as quais não há metro

sexta-feira, 14 de março de 2025

fragmento do bloco de notas de um urbanizador do sul

o ocidente vive uma obsessão 
com o grau de brancura das cidades,
como se uma cidade suja
fosse uma cidade escura,
e não uma cidade viva,
de gente que se ocupa
da arte difícil de viver

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

o baile é uma máquina para construir o mundo

a sala de aula da telescola abandonada
é ampla o suficiente 
para que dances sozinho
um disco inteiro dos paralamas
à espera de um par,
sempre à espera de um par
que traga uma outra canção 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

sapatos brancos

eram os últimos dias.
um homem punha-se de pé,
em cima de um banco de cozinha,
na praça central da cidade,
a anunciar, megafone em punho,
a iminência do fim do mundo
e que precisavamos de perdoar
por uma última vez,
amar por uma última vez,
beijar as pessoas amadas
por uma última vez.
o povo estacava frente ao homem
e todos esses apelos pareciam estranhos,
os olhos das pessoas fixavam-se
no seu impecável fato azul
e nos seus sapatos brancos,
uns sapatos brancos que não condiziam
com a roupa

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

como um ruído de um avião a romper a noite

ao cair da noite
segurava um vaso de frésias
com as duas mãos
para sentir a terra e as cores
do caule das flores
que me lembram os teus olhos
e de um modo estranho me acalmam
dos sons nocturnos:
carros acelerados na estrada em frente,
aviões que rompem os céus,
uma coruja a descer em direcção à presa

domingo, 9 de fevereiro de 2025

parlatório



uma cadeira para lá da rede,
lugar de espera justa
para o guardador de gado
ou lugar de castigo,
antes dizia-se pedagógico, 
para os loucos que ainda habitam
este lugar

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

permanecer

há um mar entre nós
e as mãos trémulas da actriz,
sujas, à porta de uma cela imunda,
um mar entre nós
e guitarrista genial
que se reconstruiu de um acidente aéreo,
um mar entre nós e os romances
do compositor brilhante que nega a música ambiente,
um mar entre nós e a flor
que rompe o asfalto e é milagre

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Um terraço em Istambul

no lobby do hotel havia lojas
a vender bandeiras vermelhas e brancas,
chapéuzinhos e chá de maçã. 
entravamos no elevador para subir
ao terraço do hotel,
de onde tínhamos uma vista privilegiada 
sobre o bósforo, o palácio de topkapi
e, ao longe, a mesquita azul fazendo sombra
à basílica de santa sofia.
a guia do grupo orientava-nos o olhar
para todas estas coisas,
quando decidi olhar para o lado de lá,
barracas com telhados de zinco
a criar um mar sem fim.
desde esse dia, treinei-me a ver
para o lado de lá, que não querem que vejamos

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

pés firmes

caía a tarde.
atravessava a aldeia em silêncio, 
só o vento faz barulho, o som dos pássaros,
portões ferrugentos, cães a ladrar ao longe.
caminhar deve ajudar a acalmar
da memória próxima
da cantora, pés fincados no chão,
a cantar cada palavra do íntimo das vísceras
e a atingir-nos como murros nos rins,
a construir-nos uma casa interior
para a inquietação 

domingo, 19 de janeiro de 2025

pop é o contrário de pop

as canções que ouves,
sei que danças ao som delas,
não me abrem espaços no coração, 
pensava para comigo,
enquanto ouvia em loop
aquela dos orchestral manoeuvres in the dark
que, não sabes, mas me lembra sempre de ti

mysterium

o lugar vazio
aqui ao lado
não o sabes,
mas é sempre à espera que venhas