blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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terça-feira, 31 de dezembro de 2024

apontamentos sobre a reinauguração das coisas

Para a M.

era um dia difícil.
nos dias difíceis, sentia-me a levar
o mundo às costas, 
fraco e inútil para suportar
o peso do mundo às costas.

do lado de lá da solidão 
e dos muros que erguemos,
dizias que vai correr bem.
talvez não vá, mas foi bom de ouvir.
reinaugurou-se um mundo.

passeio no parque

o som da água com cheiro a enxofre
a descer por um aqueduto
rumo a oeste,
uma velha a alimentar gatos
como a saciar a fome
aos seus benditos filhos,
o sol por entre as árvores
e um caminho à deriva,
à espera. sempre à espera

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

inquietação (ao vivo no ccb)

os mistérios do amor
e os desencontros
chegam tantas vezes
como um solo de guitarra
a romper-te o coração 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

sur le ciel on gémit et on prie

as coisas mais bonitas da vida
são enganos, crostas ao redor
dos olhos.
como quando olhas o céu
e o que parecem as estrelas
mais brilhantes são, na verdade, 
reflexos da luz solar
nos planetas

domingo, 17 de novembro de 2024

versos para resumir os dias

trazer a um poema
uma áudionovela do david bruno,
livros e filmes argentinos
sobre a violência da pobreza
e o esforço dos pobres e de quem
insiste em estender-lhes a mão,
o preenchimento de medidas educativas
a aplicar e registar em documento próprio,
um manual sobre o que a escola deveria ser
e nunca conseguiremos que seja,
o som da agulha ao arrancar a escuta 
de mais um disco,
o começar de mais dois livros
para travar a violência do mundo
e ajudar a calar os gritos dos pobres

governo (vhm)

a palavra amigo
inaugura um mundo novo,
a palavra amigo
é o estalo
para o começo
do mundo

sentar-se à mesa

é a partir dos livros,
tantas vezes,
que aprendemos a viver.

pela tarde
esquecia o relógio
e sentava-se à mesa
com os romances
para se alimentar das palavras
e dar início à vida

domingo, 3 de novembro de 2024

domingos de sol

os meus versos atabalhoados
serão sempre uma forma
de te amar antes do tempo

como uma carícia no rosto
que ficou por dar
ou um beijo tímido 

sábado, 2 de novembro de 2024

as primeiras obras

há um banco solitário 
junto ao memorial que erigiram
no local onde foi assassinado
pier paolo pasolini, o poeta e realizador.
é aí que sento, caderno sobre os joelhos
e caneta, como se empunha um punhal,
na mão direita.
escrevo com fúria sobre a injustiça 
que é morrerem-nos os poetas
e lamento, muito, que nunca terei
um accatone. são pequenas todas as minhas obras,
desde a primeira, que já nem lembro o que dizia

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Sobre uma escultura de Asbjørn Andresen

a escuta é uma das grandes artes:
uma orelha pode mudar a tua vida,
a tua orelha pode mudar uma vida
se te sentares à espera

terça-feira, 20 de agosto de 2024

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

terra vermelha

o sol cai vermelho
sobre a terra vermelha
de uma noite seca e ventosa
de agosto.
nos auscultadores,
uma voz e um trompete uivam,
uma guitarra silva.
caminho entre os quintais da aldeia
à procura de um lírio
que preencha as feridas
que vão cicatrizando 
ao redor do coração

quinta-feira, 4 de julho de 2024

desemparado

há poemas que começam
com erros bonitos:
o sentido de desespero,
de continuar parado aqui, 
a ver a vida passar,
o medo do desemprego,
das contas que caem
e do preço de sair à rua bem vestido
e de ter o que pôr na mesa,
pão e vinho e sopa e outras coisas
de que convém ler os rótulos
para ver se faz mal,
o desamparo de não ter quem
me chame pelo nome e me leve
pela mão

quinta-feira, 20 de junho de 2024

a vida no campo (vita brevis)

há cães pequenitos a perseguir os caminhantes
enquanto abanam o rabo e esperam a queda
de uma côdea de pão que não há nos bolsos,
há o canto dos pássaros a lembrar canções de amor,
há um homem abraçado a um punhado de caniços
como se abraçasse outra vez a mulher de olhos claros
que lhe preenche os sonhos

quarta-feira, 19 de junho de 2024

água salgada

sereno, o coração está em espera:
virás, um dia, em busca das palavras 
e das mãos que servem,
enquanto as mãos ainda servem
para escrever e tocar notas musicais 
sobre o amor e a espera, o amor e alegria,
o amor e o futuro

domingo, 9 de junho de 2024

de utilitas

pela manhã cinzenta,
de novo um mesmo exercício:
tornar o movimento inútil dos poemas 
no esforço útil da escuta,
ser ouvidos para o que corre dentro
dos nossos corações 

sábado, 11 de maio de 2024

relampejar por entre caruma

os pirilampos são bichos feios
que emanam uma luz bonita.

soubera eu guardar essa luz
na palma das mãos
sem que os bichos se percam,
pudesse eu guardar
uma luz fria na palma das mãos 
que iluminasse os teus olhos

domingo, 5 de maio de 2024

o último signo

o café da aldeia
é uma memória do passado,
permanece no passado
com decoração de madeira
e calendários velhos.
é um estranho lugar de conforto 
e saudade, só os velhos e as moscas
aqui habitam com vontade 

tigre enforcado




um casal invade aos berros
a ala de alta segurança
da antiga prisão política,
abre e fecha as gavetas da cozinha
e ignora um prato de metal, uma colher torta
e um púcaro velho e desgastado.
as pessoas fogem dali,
não querem aquela presença 
nem o confronto com os loucos.
mais adiante, a mulher visita em silêncio 
uma das celas de isolamento 
e o homem interpela-a com uma pergunta:
«de que material é feito o chão?»
era um piso de madeira, até bonito.
o homem diz que assim os inquilinos não tinham tanto frio,
e humanizou os algozes.
o fascismo é este ponto preto
na maçã encarnada,
que ataca todo o fruto e os que o rodeiam

quarta-feira, 24 de abril de 2024

celeste dos cravos (ii)

é a véspera da revolução:
visto-me, ao acaso,
de cravos vermelhos e brancos.
amanhã é dia de festa,
de vencer o cinzento 
e romper o silêncio 
que nos impunham 

sábado, 13 de abril de 2024

não atire pedras

há vários alertas
junto do promontório 
que cai até ao rio
para que não atiremos pedras
aos telhados das casas.
guardei as pedras que acumulei
nos bolsos das calças 
ao longo da jornada
e sentei-me no banco forrado de azulejos,
o mais bonito banco de azulejos
em que já repousei,
e escrevi um poema sobre pedras
e o meu coração que está lá longe,
sempre lá mais longe

sábado, 6 de abril de 2024

trois couleurs: bleu

cada choro e cada riso
na cara linda da actriz
são uma lembrança de que
há apenas uma forma eficaz
para ressignificar a cor azul:
o amor, uma canção de amor
sussurrada em grego

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Cahiers de Taizé

 A Páscoa deste ano foi vivida em Taizé. A partir dessa experiência escrevi alguns poemas, que podem descarregar e ler aqui.

quinta-feira, 21 de março de 2024

arbor dies

faremos um poema
como uma árvore
a criar raízes ancoradas
no centro do mundo.
à sombra esguia dos seus ramos
contemplaremos as flores
de magnólia
e buscaremos o silêncio.

quarta-feira, 20 de março de 2024

um dia de véspera

amanhã é dia de engalanar os poemas,
costurar as palavras com flores do campo
e cheiro de jasmim e canções de festa.
hoje desejo apenas um poema cru,
flores de plástico sujas de pó
numa jarra velha de barro
ao canto da sala vazia.

terça-feira, 19 de março de 2024

parque dos poetas

por entre palavras que nascem do chão
e palavras que fogem até ao rio
e se tornam mar e paisagem
há olhos a deter-se na dança dos dias
e em cores que nos levam rumo ao mar
e outros que se encantam com uma mulher de pedra,
uma descendente de pedra de uma família dizimada.
há lugares assim, para olhos que se encantam
e corações que querem parar num mundo
que podia ser sempre um jardim

domingo, 3 de março de 2024

escola velha

o que busco nos lugares abandonados
são vestígios de vida
objectos que lembrem alegria

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

«um libertino passeia por braga»

Para Luiz Pacheco


Há um pombo preto à janela
de uma casa abandonada
frente à igreja de São Victor.
O pombo está parado à espera da vida,
os homens vagueiam pela cidade
à procura de um sinal que dê sentido,
talvez um pombo preto à janela
a aguardar por um bicho no passeio

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

o sol a bater contra persianas laminadas

a vida segue vagarosa, aqui,
as árvores agitam-se rápidas
do lado de lá da janela,
como a querer fugir para o mar,
o sol bate contra as lâminas das persianas
a empurrar para um lugar outro,
mais quente e mais rápido
onde continuar os dias por visitar

domingo, 28 de janeiro de 2024

naus de társis

este é um lugar de vento.
como o vento leste despedaça as naus de társis,
aqui se vai agitando, pouco a pouco,
os passos com que conto
e gasto a vida

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

a estátua ao escritor desconhecido, em budapeste

a verdadeira poesia desaba por dentro,
o resto é silêncio.
deixei estes versos roubados aos pés da estátua do escritor desconhecido
e corri feliz para junto da ponte széchenyi
para ver correr o danúbio
e recuperar a memória dos teus olhos bonitos
e do sorriso tímido com que reagias à cidade amarela.
depois dos dias da neve, budapeste ganha tons bonitos
e parece ornada de flores silvestres

sunny days

nestes dias de sol de inverno
espero só um banco de jardim sem sombra
onde ouvir os pássaros
e um solo de guitarra
com pedal chorus
e alguma distorção
a condizer com a vida,
às vezes distorcida

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

sete luzes a iluminar a estrada velha

Diógenes, se fosse vivo,
apontaria a sua lanterna
aos olhos dos homens,
para iluminar a mágoa
e buscar uma esperança
que vive sempre lá mais dentro