blogue de poesia e teologia.

aqui não se escreve segundo o acordo ortográfico de mil novecentos e noventa.

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sábado, 21 de junho de 2025

roupa de festa

sentar-nos-emos à mesa
para te apresentar os meus poetas,
poetas para dias cinzentos,
os dias cinzentos dos poetas

alcachofra

um homem subia à altura
dos moinhos abandonados
a desejar planar sobre
os campos roxos de alcachofras,
devem ser mais bonitos os campos
visto de cima, em voo livre,
devem ser mais bonitos
os homens em queda
armados com asas de cartão

terça-feira, 17 de junho de 2025

centeio

um dia pegarei nas tuas mãos
e com elas emaranhadas nas minhas
faremos com calma o pão,
aguardaremos com vagar que cresça
e escureça no calor do forno.

partilharei contigo a mesa,
partirei contigo o pão
e dividiremos o amor

segunda-feira, 16 de junho de 2025

uma playlist adolescente

como um fruto adolescente
a pender de uma árvore velha
exposta ao sol

sou eu, a anoitecer
com saudades daquele tempo
dos discos partilhados com os amigos

das tardes em que morríamos a rir
à sombra das ameixeiras
sem saber que não voltaríamos mais aí

quarta-feira, 14 de maio de 2025

nubes

o sol a bater contra as nuvens
ao cair da tarde
é, certos dias,
a única beleza necessária 

domingo, 30 de março de 2025

bucólica


quando chegava a primavera
escolhia criteriosamente a sombra
de uma árvore milenar,
para lá dos pomares que cercavam
a pequena aldeia
e sentava-me sobre uma pedra
a escrever versos de amor que,
nunca saberias, eram sempre para ti.
ao final da tarde abria uma cova com as mãos
e enterrava todos os poemas,
para que não os pudesses ler
e para que deles brotassem flores

sexta-feira, 28 de março de 2025

le retour du soleil

andamos para aqui a esperar a vida,
com o amor, a companhia dos amigos,
a mesa farta inaugurada na manhã de páscoa,
canções felizes sobre liberdade e a respiração
frenética das aves em vôo rasante,
como os pequenos pássaros esperam
por um dia de sol, no final de uma manhã
da próxima primavera

segunda-feira, 24 de março de 2025

manualidades

as mãos humanas são um instrumento 
insuficiente para medir a febre
e as distâncias físicas,
também as interiores,
para as quais não há metro

sexta-feira, 14 de março de 2025

fragmento do bloco de notas de um urbanizador do sul

o ocidente vive uma obsessão 
com o grau de brancura das cidades,
como se uma cidade suja
fosse uma cidade escura,
e não uma cidade viva,
de gente que se ocupa
da arte difícil de viver

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

o baile é uma máquina para construir o mundo

a sala de aula da telescola abandonada
é ampla o suficiente 
para que dances sozinho
um disco inteiro dos paralamas
à espera de um par,
sempre à espera de um par
que traga uma outra canção 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

sapatos brancos

eram os últimos dias.
um homem punha-se de pé,
em cima de um banco de cozinha,
na praça central da cidade,
a anunciar, megafone em punho,
a iminência do fim do mundo
e que precisavamos de perdoar
por uma última vez,
amar por uma última vez,
beijar as pessoas amadas
por uma última vez.
o povo estacava frente ao homem
e todos esses apelos pareciam estranhos,
os olhos das pessoas fixavam-se
no seu impecável fato azul
e nos seus sapatos brancos,
uns sapatos brancos que não condiziam
com a roupa